Luanda - Enquanto jurista, com parentes no exterior do país na condição de emigrantes regulares e irregulares. Não escrevo em nome de qualquer instituição pública ou organização da sociedade civil. Escrevo como cidadão, como homem de direito e como angolano comprometido com os valores consagrados na nossa Constituição. Escrevo, sobretudo, como ser humano indignado com o que ouvi recentemente da parte de quem devia ser um defensor da legalidade e não um apologista da violência do Estado.
Fonte: Club-k.net
Refiro-me às declarações públicas prestadas pelo actual Comandante-Geral da Polícia Nacional de Angola, o Comandante Ribas, durante entrevista concedida à TV Zimbo, nas quais justificou a execução sumária de uma mulher identificada como Ana Mabuila, alegando que a sua morte visou garantir a integridade física dos agentes da polícia, no bairro Caop, em Luanda.
Segundo o próprio Comandante Ribas, tratava-se de uma cidadã estrangeira, em situação migratória irregular, que teria participado em ações de vandalismo. Foi morta com um tiro disparado nas costas. A frieza com que se descreve este facto é, por si só, chocante. Mas mais grave ainda é o esforço em justificar o injustificável — como se o Estado tivesse licença para matar, como se a irregularidade migratória retirasse a esta mulher o direito à vida, à dignidade, à justiça.
A legalidade como limite da força
A nossa Constituição é clara: “A vida humana é inviolável.” Nenhum cidadão, nacional ou estrangeiro, pode ser privado da vida fora dos termos rigorosamente previstos na lei, e mesmo nesses casos, o Estado tem sempre o dever de proteger antes de punir, de preservar antes de eliminar. A Polícia Nacional, enquanto força pública, deve obedecer ao princípio da legalidade, da proporcionalidade e da necessidade, quando actua. E quando falamos de proporcionalidade, falamos de três exigências concretas:
• A adequação da ação policial ao objetivo a alcançar; • A necessidade, isto é, a escolha do meio menos gravoso; • E a proporcionalidade em sentido estrito, que impõe a avaliação de custo humano da medida tomada.
O que se passou no bairro Caop, segundo o próprio discurso do Comandante, foi uma execução sumária. Nada justifica que uma mulher seja alvejada pelas costas, sem julgamento, sem defesa, sem qualquer avaliação do perigo real que poderia representar naquele momento. Se há algo de que a Polícia deve ser guardiã, é da vida. Não há Estado de direito possível quando os agentes que devem proteger são autorizados a eliminar.
Responsabilidade institucional e cadeia de comando
As palavras do Comandante Ribas não são neutras. Elas revelam mais do que uma simples opinião: são confissões de responsabilidade institucional. Ao apresentar a morte da senhora Ana Mabuila como legítima e necessária, o Comandante assume politicamente — e talvez juridicamente — a autoria da ordem ou, no mínimo, a sua ratificação. Num Estado onde os agentes muitas vezes não têm formação jurídica robusta nem autonomia de decisão, a palavra do comandante é ordem. E quando essa ordem conduz à prática de um crime, a responsabilidade não é apenas do executor, mas de quem mandou, de quem inspirou (instigou), de quem encobriu.
O Direito Penal reconhece essa cadeia de responsabilidades. Um agente que cumpre uma ordem manifestamente ilegal, como matar um civil desarmado pelas costas, deveria ter recusado. Mas o maior peso recai sobre quem manda “o homem da trás tem o iter criminis”. E neste caso, a conduta do Comandante-Geral Ribas merece repúdio e consequências.
A condição de estrangeira não é sentença de morte
Ainda mais perturbador é o esforço do Comandante Ribas em desvalorizar a vida da senhora executada com base na sua nacionalidade e condição migratória irregular. Ora, as convenções internacionais, que Angola subscreveu, e a própria Constituição da República, garantem direitos fundamentais a todas as pessoas em território nacional — sem distinção. Nenhum ser humano perde o direito à vida por estar em situação irregular. Nenhuma mulher pode ser tratada como descartável por não ser angolana. Isso fere o mais básico dos princípios humanistas e civilizacionais.
Não nos esqueçamos: milhares de angolanos vivem hoje em outros países. Muitos deles também enfrentam dificuldades legais. Mas exigimos, nesses países, o respeito pela sua dignidade. Como, então, negá-lo aqui, na nossa própria casa, a quem vem de fora?
Por uma polícia humana, legal e republicana
O Comandante Ribas, com esta postura pública, demonstrou não reunir as condições éticas, jurídicas e políticas para continuar à frente da Polícia Nacional de Angola. Um líder que defende a execução sumária de civis e que desumaniza cidadãos com base na sua nacionalidade ou condição migratória não serve ao Estado democrático de direito, mas sim à lógica da repressão cega e arbitrária.
A sua permanência no cargo envergonha o país e fragiliza a confiança dos cidadãos na polícia e nas instituições democráticas. E se o Comandante não tem dignidade suficiente para pedir a sua exoneração, então deve ser afastado por quem o nomeou, porque quem nomeia, assume a responsabilidade política e moral de manter ou remover.
A minha esperança
Escrevo esta opinião com profunda dor, mas também com esperança. A esperança de que ainda é possível em Angola construir uma polícia que defenda o cidadão e não o viole. Uma polícia que tenha como guia a legalidade, a pedagogia, a urbanidade. Uma polícia que salve, que escute, que respeite.
A morte de Ana Mabuila não pode ser mais um número, mais uma estatística, mais uma vítima sem nome de um Estado que se esquece do seu próprio povo. Que esta opinião sirva de memória, de apelo e de alerta. Para que nunca mais uma vida seja apagada pela farda que deveria protegê-la.
Não posso deixar de opinar perante tamanha injustiça!
Luanda, 01 de Agosto de 2025
Vicente Cuancua