Luanda - Quando os factos “falam alto e bom som”, quando a verdade acontece perante os nossos olhos, é dura e é cruel, os adjetivos fervilham e atraem a atenção do mundo e quase dispensam senão aos historiadores o registo escrito. O que nunca se devia ter assistido na sociedade angolana do século XXI, 23 anos depois de imposto o silêncio das armas - depois da alternância de inquilino no poder -, aconteceu e assistimos e acolhemos na memória coletiva com a respetiva assinatura, em estilo bold. Diz ela, implicitamente: Pelo poder não nos importamos de sangrar o país inteiro. Ou não é assim...? Então não quiseram deixar uma marca indelével na memória dos jovens para que saibam que o 27 de Maio, e a sexta-feira sangrenta, são as guilhotinas da suprema intimidação? Agora juntou-se mais uma. O problema, que é muito sério, é que a medida limite encheu ainda mais, está ainda mais difícil de suportar, por isso, não tarda a transbordar. É bom e é sábio parar, sobretudo, dar-se ao exercício de reflexão permanente a ver se se logra perceber até que ponto cada gota de sangue derramado não aduba a solução da violência pela violência. Porquê preferir a eliminação das manifestações de descontentamento por via da eliminação física? O verbo dialogar conjuga-se não na ausência, mas, na presença de desafios a debelar coletivamente.
Fonte: Club-k.net
Angola caminha para uma data “ímpar”. Histórica e simbolicamente “singular” para os seus filhos. O 11 de Novembro vem aí “a passos largos”. Há de chegar “a breve trecho”! No entanto, o que é que está diante de nós? Não se podia encostar acossadoramente sobre a retina da sociedade angolana, cenário mais insípido do que uma efeméride que se debate com a sua própria nulidade. A árvore e os seus próprios frutos, desmentem-se mutuamente. Relutantemente, o maior desapontamento coletivo no campo das justas consequências para a vida dos angolanos encontra-se aí, nessa contradição insanável. A árvore é a independência nacional; os frutos são a situação e as condições de vida que castraram todos os sonhos e a esperança dos seus cidadãos. E porque é o nosso contristamento quando em condições normais estaríamos a rejubilar, e estariam a ressoar nos quadrantes da vida presente - em toda atmosfera nacional -, vivas ululantes. Sim. Certamente, se desde o princípio “tivéssemos” evitado a trajetória errática que ainda hoje a governação, por apego aos proventos não lícitos nem legítimos, privilegia.
Contudo, a verdade é que uma elite somiticamente cultora da posse do poder pelo poder, recusa abeirar-se do atlas dos valores humanistas. Rejeita ceder, salvo seja, mimeticamente, àquilo que de melhor há para dar a um povo. Dá mostra inequívoca de uma frieza moral abjeta. O que diz e o que executa revelam tal falta de empatia para com sofrimento dos que caem diariamente nas ruas. Desviam os olhos e dão a volta para não se confrontarem com o testemunho do mal que graça nas mesmas artérias rodoviárias por onde circulam com as suas luxuosas viaturas. É mais que estoico! Dúvidas não há de que padecem de aversão aos reflexos (bons) das governanças bem-sucedidas.
Aquelas que, pelo mundo fora, eles próprios conhecem porque para lá despacham filhos para formação ou para procriação em condições dignas. Aqui, porém, não se querem voltar para o povo e comprometer-se com ele; nem sinais dão de atração por um pragmatismo governativo altruísta. Não querem nem desejam consubstanciar o seu exercício de poder nos modos e nas finalidades do exercício do poder [político] com vista a criação de cadeias de valor com expressão nos eixos do estado. Os vetores essenciais da sociedade e da vida nacional foram deixados entregues à sorte e ao acaso. Dar ao povo qualidade de vida coerente com os recursos de que dispõe o país, investir mais na educação e na saúde, nem falar disso!
Fomentar a iniciativa empresarial privada, criar emprego no vazio desta realidade, dar resposta minimamente a altura das necessidades básicas alimentares das populações, tudo não passa de uma miragem. O acúmen que não têm, é de perceber que sem partilha dos benefícios do poder conquistado ao domínio colonial distante, com custo elevado, não há futuro para ninguém: Reduzir a segurança e a viabilidade da soberania do Estado a interesses individuais e ilegítimos - tenham esses no epicentro a preservação de um estatuto social por conta do enriquecimento circunstancial e conjuntural, tenham o que tiverem -, não passam de pulsões de um infantilismo intelectual e político. Esta concepção até nefanda é. Abramos os olhos: Basta uma volta de 180o para vermos quantos Estados securitários, quantas autocracias, quantos regimes antidemocráticos jazem agora no fundo dos destroços do paradigma económico e social que eles - os seus cultores, para o ego e proveito próprios -, alimentaram e adularam durante décadas.
Entre o onde estamos e onde deveríamos estar, fechar os olhos já não funciona
Diz-se profusamente que a arte fala; por isso os que a compreendem dialogam com ela. Então, se quisermos exercer uma análise crítica sobre a situação em que se encontra Angola, hoje; e, se no nosso exercício a quisermos ver e analisar com o interesse de um crítico das artes visuais, não escaparia a vista do crítico menos experimento o conflito existente entre a obra e o artista. A obra acusa o seu próprio criador! A obra assaca ao seu próprio autor, com assinalável contundência, a responsabilidade por todos os males de que padece; os mais inimagináveis para ela própria.
Grandes recuos no tempo para quê?
Não há necessidade porque o panorama, atual, fornece elementos de sobra para todos os gostos e desgostos. A obra, esta olha para si (própria) e dá consigo abesbílica com entusiasmo espasmado nos olhos do mestre. Onde ela resmoneia com ele para alterar o traço, o mestre reforça-o; onde ela protesta palidez o mestre acrescenta lividez; onde a obra sussurra paroxismo da exasperação, o mestre estropia-a.
Ora quem nos governa nega-se a si mesmo e, por isso, nos inflige sofrimento constante. Nega-se como uma personalidade política e administrativa sobre a qual recai a obrigação de combater as privações que afetam as populações. A missão natural de um governo é em primeiro e em último lugar nutrir-se de sensibilidade para com as aflições e o uivo social. O contrário é contranatura. Ouvir e responder os gemidos dos governados não é dar guarida à populaça. Infelizmente na visão do executivo incumbente não há senão que optar pela apropriação ilícita dos cifrões em detrimento daqueles que, em bom rigor, tratam como a populaça. O MPLA precisa de despertar; é tempo de sair de uma bolha presunçosa e de desfazer-se seminalmente do seu diadema decadente. Enquanto poder longevo que arrasta nos pés cinco décadas de má governação, a negação do seu esvaziamento monopólico não augura um futuro auspicioso para ninguém. Pense-se nisso, especialmente se quisermos deixar o nosso território como legado maior às gerações futuras. Angola e os angolanos ultrapassam o hoje e o agora. Todos os que agora estão passarão e, quer queiram quer não, deixarão um legado – louvável ou deplorável. Isso dá que pensar uma vez que tudo aquilo que o MPLA vem perpetrando ao longo dos tempos [contra as populações] leva a concluir que a sua vida interna (do MPLA enquanto partido político, não nos merece a menor atenção.
Banir o MPLA, concretamente, do espetro da nossa curiosidade sobre o que lá vai-se passando na sua vida interna – sejam os debates e disputas internas, etc., etc., não é descabido. O racional da proposição prende-se com a utilidade, ou não, de manter o MPLA no espectro da opinião pública. No domínio da vida pública só terão atração e só serão úteis matérias sobre temas particularmente nobres. E nobre é tudo o que concorre para o bem do povo. Separando águas e águas, uma coisa é debater a acção governativa do MPLA. Com esta temos de lidar pois, desesperadamente, ansiamos nos livrar dela. Isso, sim, temos de remoer e rebater até a vitória final. Contrariamente, completamente diverso, é debater a vida interna do MPLA. Salvo melhor entendimento não se vislumbra, nem em termos imediatos nem a prazo, utilidade na ideia de emprego de tempo em debates sobre querelas políticas internas do MPLA. É simples: O sentido é que ali existe tão só uma disputa entre o atual ditador e os potenciais futuros tiranos do povo. Então: Haverá algum interesse, para a generalidade dos angolanos, dedicar o seu tempo a debater e a comentar as disputas entre ditador em funções e o futuro ditador? Avisado e normal há de ser debater apenas a libertação do jugo do tirano incumbente. Deste, sim, há que libertar-se custe o que custar.
Haverá certamente mil razões e mais alguma para nos afastarmos de falsas esperanças quanto ao que se debate, ou não, no seio do MPLA.
Não se vê por que deparar com qualquer dificuldade, ou reservas, em viver com a firme convicção de que no seio das fileiras do MPLA, nunca, jamais, se vai gerar ou provirá uma liderança para governar para o povo. As vozes proscritas que por lá andam, ou que de longe – até mesmo a partir de outras geografias - esperneiam e gritam e entregaram-se ao choro e a lamúria, não passam de meras carpideiras políticas. Vivem tão só sequiosas do regresso e da reabilitação ao estatuto perdido. O MPLA é um saco sem fundo: Juntamente com os proventos que teriam oferecido uma vida digna aos angolanos vazou, no abismo das suas veleidades inúteis, todo capital de esperança que os angolanos lhe haviam depositado.
Voltando a nossa metáfora diria: Ouvir e escutar a obra para se unir a ela como um só, unicamente um verdadeiro “artista” político é capaz de o fazer. O MPLA não tem substrato para dar ao povo a dádiva de um político nobre e servidor do povo. O MPLA e a sua obra, de 50 anos, são um só. Lamentável e deprimente é a constatação de que são hediondos - com imensa pena da obra que é vítima do autor. Portanto; Um presidente que se sente verdadeiramente eleito, e legitimado, inclina-se para ouvir e para captar o que sai da boca do povo. O seu tato assoma a flor dos problemas especialmente quando o clamor sobe de tom.
O dedo está posto na garganta. Algo tem de ser regurgitado em nome da verdade e da justiça, porém, sobretudo, do estado de direito;
O que assistimos nos últimos dias, do pretérito mês de Julho, revelou mais uma vez a muralha erguida pelos governantes angolanos. Uma cortina de ferro moral e física. Escolheram escudar-se do povo que todos dias sujeitam a maltratos. Fugiram dar de caras com a verdade pura e dura para a não enfrentarem. Fecharam-se nas suas torres de marfim, pois, diálogo é um verbo que faz um conceito cuja existência não admitem sequer. A fortaleza do regime é a violência brutal que se traduziu no assassinato de um número significativo - ainda desconhecido - de jovens que se limitaram a exercer um direito constitucional. É uma verdadeira tragédia nacional. Quando quem governa mata os próprios eleitores, isso de si mesmo diz muito da essência do regime. Nem sequer surpreendeu a comunicação do presidente da república. Tardio na sua comunicação ao país, ao invés de realçar a verdade da brutalidade policial, o P.R. optou por falar para fora do país numa clara tentativa de justificar o morticínio que lhe ficou colado às mãos. Fez isso na sua despudorada alusão a uma alegada tentativa de sabotagem da economia e da paz social. Cá para nós - sociedade civil em geral, e em particular para as famílias enlutadas -, de suma importância é as autoridades verterem nos fóruns próprios, de acesso livre, toda informação que a opinião pública procura como sorvedouro natural que é. Tudo que há ou possa estar ou pode entrar em circulação que, entretanto, falta apurar.
O escrutínio público dos atos das autoridades é também um valor relevante no contexto da defesa da democracia. Na defesa do mesmo estado de direito sobre o qual pendeu a alegada ameaça que despoletou a brutalidade policial. Dai, uma vez neutralizada a alegada ameaça, um dever efetivo impende sobre as autoridades nacionais; partilharem com país designadamente quantos mortos resultaram da brutalidade policial? Quantos cidadãos se encontram listados e/ ou reclamados ou procurados como desaparecidos? Como se definiu o procedimento, ou seja, com base em que critérios se estabeleceu e aplicou-se o processo de reconhecimento de cadáveres? Como se está processando a entrega dos restos mortais às respetivas famílias? Porque não divulgaram a listagem dos manifestantes detidos? Quanto mais não seja para que as famílias possam, se necessário, assegurar-lhes suporte jurídico. Presentemente, inúmeras famílias estão-se queixando de recusa das autoridades em autorizar o acesso às morgues, aos hospitais e às esquadras e/ ou centros de detenção. Qual é a resposta alternativa aos cordões policiais levantados a volta das instituições e locais referidos? Quando e como poderão as famílias encerrar este capítulo execrável, e funesto - resultante da brutalidade policial irracional? Quando poderão as famílias dispor, finalmente, da informação e das condições e assistência das autoridades, necessárias, para o virar de tão medonha página da história contemporânea do país?
Pela verdade e pela transparência, pelo respeito pela liberdade e pela vida;
Luvumba Miguel