Luanda - Cinco décadas após a proclamação da independência de Angola, as comemorações do cinquentenário revelaram um desfase gritante entre o discurso oficial e a realidade do país. O Presidente João Lourenço, em cerimónia solene a 11 de Novembro de 2025, exaltou a paz, a justiça social, a inclusão e a soberania nacional conquistadas. Contudo, as escolhas simbólicas feitas na celebração, desde a forma “europeia” de entoar o hino nacional até ao amistoso milionário de futebol organizado para marcar a efeméride, geraram incongruências e dissonâncias difíceis de ignorar. Este texto analisa criticamente esses contrastes: entre a grandiloquência do discurso e a persistência das carências sociais; entre a ostentação do poder e as expectativas de um povo que, passado meio século, ainda aguarda pela materialização plena dos ideais de independência.
Fonte: Club-k.net
A nota dissonante do hino na voz da ópera europeia
O Hino Nacional angolano foi executado em estilo clássico, num registo de ópera europeia interpretado pelo tenor Emanuel Mendes, acompanhado por uma orquestra sinfónica juvenil do país, durante as comemorações oficiais dos 50 anos da Independência. A Orquestra do Cinquentenário, formada por 130 jovens músicos angolanos, apresentou pela primeira vez o hino em versão sinfónica integralmente nacional. Sob a batuta de um maestro estrangeiro (um convidado especial), aquela interpretação trouxe pompa e gravitas clássica à celebração. Mas trouxe também interrogações: num acto que celebrava a libertação do jugo colonial, por que motivo se optou por uma estética musical de clara raiz europeia? Angola possui ricas tradições musicais, do semba ao kilapanga, do coral tradicional ao kuduro, que carregam décadas de resistência cultural. Contudo, no momento de celebrar a independência, preferiu-se a linguagem da música erudita europeia. Esta escolha incongruente levanta questões sobre a mensagem pretendida. Terá sido uma tentativa de conferir solenidade “universal” ao evento, falando num idioma cultural que os dignitários estrangeiros entendessem? Ou refletirá um complexo pós-colonial, em que ainda se associa o prestígio oficial a símbolos importados da antiga metrópole? Em vez de enfatizar a africanidade independente, o país parece ter vestido uma gala cultural emprestada, numa dissonância simbólica difícil de ignorar.
O impensável em Paris ou Lisboa
A decisão de entoar “Angola Avante” em tom de ópera convida a uma comparação provocadora: imaginemos o cenário inverso. Seria concebível que, nas comemorações de uma data nacional em França, se executasse La Marseillaise em arranjo de semba ou kuduro, com tambores africanos e coreografia de capoeira? Ou que em Portugal se convidasse um coral angolano para entoar A Portuguesa num estilo de marrabenta ou kizomba perante a comunidade internacional? A resposta óbvia é não, tais escolhas seriam vistas como inadequadas e descaracterizadas. Os Estados zelam pelos seus símbolos nacionais, moldando-os conforme a sua própria identidade cultural, sobretudo em ocasiões solenes. Por que razão, então, Angola, no preciso momento de afirmação do seu percurso histórico, optou por uma apresentação tão pouco identificada com as suas matrizes culturais africanas? A questão ganha relevo não por rejeição à música clássica (que também pode ser património adquirido), mas pelo seu peso simbólico num jubileu de independência. Se a independência política foi conquistada há 50 anos, a independência cultural parece ainda refém de validações externas. Como notou Ricardo Castro, maestro que liderou a criação da Orquestra do Cinquentenário, “em Angola, a música sinfónica não é importação europeia. É conquista africana”. Este argumento, de que apropriar a orquestra clássica seria um triunfo cultural, tem mérito ao valorizar a capacitação dos jovens músicos angolanos. Ainda assim, permanece a impressão de que, no dia do cinquentenário, faltou à cerimónia a alma sonora de Angola. O que deveria ser uma afirmação de identidade acabou por soar a imitação refinada, algo que países com longa história independente dificilmente fariam com os seus próprios símbolos. A ironia é evidente: buscou-se honrar a soberania exibindo uma estética alheia à maioria soberana do povo.
Messi em Luanda: entre a propaganda e a pobreza
Outra iniciativa celebrativa que expõe a distância entre retórica oficial e realidade nacional foi a organização de um jogo amigável de futebol entre Angola e Argentina, em Luanda, poucos dias após a data da independência. A presença do astro Lionel Messi, recém-coroado campeão do mundo, foi alardeada como um “presente” de aniversário para o país, mas o seu custo suscitou polémica. Estima-se que o Governo angolano tenha pago em torno de 12 milhões de dólares para assegurar a vinda da seleção argentina e de Messi a Angola. O investimento dividiu opiniões: de um lado, comparou-se o feito a um golpe de mestre em termos de projeção internacional, uma espécie de “Rumble in the Jungle” moderno ao estilo angolano; do outro, soaram críticas veementes à despesa astronómica numa nação onde milhões enfrentam carências básicas. A analogia com o célebre combate de boxe organizado em 1974 pelo presidente Mobutu no então Zaire impõe-se. Tal como Mobutu pagou cachets inéditos de 5 milhões de dólares a cada pugilista para promover a sua imagem internacional, o Executivo angolano desembolsou uma pequena fortuna para trazer a Luanda a aura do futebol mundial. Pretendia-se, talvez, recriar um momento “histórico” de afirmação, fazer de Angola, por um dia, o centro das atenções globais desportivas. E de facto, o Estádio 11 de Novembro encheu-se de 50 mil pessoas em festa, ingressos populares a preço simbólico, e os angolanos vibraram ao ver Messi marcar um golo em solo pátrio.
No entanto, terminada a euforia do apito final, emergiu a dura realidade que o brilho do espectáculo não ofuscou. Organizações da sociedade civil e ONGs questionaram de imediato a moralidade do gasto. “A realidade do país não é fácil. Há muita pobreza, muita gente que necessita de muitas coisas”, desabafou o capitão da seleção angolana, Fredy, quando instado a comentar o tema. Num apelo enviado antes do jogo, quatro grupos de activistas angolanos lembraram que 71,4% da população (27 milhões de pessoas) não teve acesso a uma alimentação saudável em 2024, e que a subnutrição afeta cerca de 8,3 milhões de angolanos. Classificaram o evento como “instrumento de propaganda política, usado para encobrir violações e desviar a atenção da crise social”. A imagem de Messi erguendo o troféu de melhor em campo contrastou, tristemente, com a imagem mental das crianças angolanas que erguem tijolos em escolas sem teto, ou das famílias que erguem baldes vazios à procura de água. A partida comemorativa transformou-se, assim, num símbolo de luxo desconectado da miséria, tal como apontou um colunista local: “este amistoso não é entre Angola e a Argentina, é entre o luxo e a miséria... e, até agora, a miséria continua a perder por goleada”.
Discursos de paz e justiça social vs. realidade socioeconómica
No seu discurso oficial pelo cinquentenário, o Presidente João Lourenço exaltou a paz duramente conquistada e traçou um quadro de optimismo prudente. “Aproveitemos esta oportunidade única para construirmos juntos uma sociedade inclusiva e com igualdade de oportunidades para todos os cidadãos”, declarou João Lourenço, referindo-se aos frutos de 23 anos de paz desde o fim da guerra civil. A retórica presidencial sublinhou que o combate à fome, à pobreza e às desigualdades sociais está no centro das prioridades do Governo, juntamente com a melhoria de infraestruturas e serviços básicos. Palavras irrepreensíveis, sem dúvida, e coerentes com as aspirações de qualquer nação que procura honrar os sacrifícios dos seus heróis da independência. O problema está na distância entre essas palavras e os factos concretos do dia-a-dia em Angola. Enquanto o Chefe de Estado discursava sobre inclusão e igualdade, a maioria dos angolanos comuns não sentia nada disso no terreno, nem na forma como a independência foi comemorada, nem nos indicadores sociais que teimam em colocar Angola entre os países com maiores índices de pobreza e desigualdade do mundo. Em teoria, João Lourenço apontou exactamente o caminho certo: unidade nacional, reconciliação e justiça social como pilares do futuro. Mas na prática, os eventos patrocinados pelo próprio Executivo nesse aniversário histórico enviaram sinais contraditórios. A pompa elitista do concerto sinfónico e a extravagância do jogo de Messi ofuscaram as mensagens de humildade, inclusão e prioridade aos pobres que o discurso pretendia transmitir.
Ao homenagear Agostinho Neto, Pai da Nação, e lembrar a “responsabilidade de todos os angolanos trabalharem pelo progresso do país”, João Lourenço sem dúvida pretendia inspirar um sentimento de unidade e propósito comum. Porém, muitos perguntam-se: onde estava esse propósito comum quando se decide investir milhões num único espectáculo, em vez de no saneamento básico ou no abastecimento de medicamentos? Onde estava a prioridade aos esquecidos quando a celebração do jubileu pareceu feita mais para impressionar convidados estrangeiros do que para dialogar com o povo nas ruas? Estas questões ecoam como um contraponto necessário, mostrando que a narrativa oficial, por mais bem intencionada, arrisca soar a discurso vazio se não encontrar ressonância na experiência colectiva dos cidadãos.
Para lá da crítica, um apelo à reflexão e acção colectiva
Não se trata aqui de negar os avanços de Angola em 50 anos, nem de rejeitar a importância de celebrar as conquistas. A paz alcançada em 2002, por exemplo, é um alicerce real e valiosíssimo, “a conquista da paz e a reconciliação nacional devem ser a oportunidade única para a construção de uma sociedade inclusiva”, como enfatizou João Lourenço. O que está em causa é como essas conquistas são celebradas e comunicadas, e o que isso revela sobre o rumo do país. As celebrações do cinquentenário, concebidas para unir e exaltar, acabaram por expor tensões latentes: entre orgulho oficial e cepticismo popular, entre ambição de modernidade e raízes identitárias, entre promessas de igualdade e persistência da desigualdade. Mais do que um ajuste de contas com o passado, o cinquentenário deveria ser um ponto de partida para o futuro. A independência não pode ser um ritual vazio, repetido ano após ano, mas sim um projecto vivo que se refaz a cada geração. Cabe agora perguntar, de forma engajada e reflectida: que independência queremos nos próximos 50 anos? Uma independência apenas política, ou também económica, social e cultural, onde os angolanos de todas as origens sintam que o país lhes pertence verdadeiramente? Uma independência celebrada com factos e inclusão, e não apenas com discursos e galas?
Angola encontra-se numa encruzilhada simbólica. Os desacertos observados nas comemorações de 2025 podem servir de lição e convite à mudança. Está nas mãos das lideranças, e igualmente nas mãos do povo angolano, harmonizar o hino oficial com a voz da realidade. Que as próximas celebrações nacionais possam entoar, sem dissonâncias, a melodia genuína de um país que se reconcilia consigo mesmo: orgulhoso da sua cultura, justo com os seus cidadãos e consciente de que a verdadeira festa da independência acontece quando cada angolano tem acesso pleno à dignidade e à esperança. Só então Angola poderá, enfim, cantar vitória em uníssono, honrando os seus mártires não apenas em palavras, mas através de um futuro partilhado por todos.
Ricardo Vita
Headhunter e observador pan-africanista